sábado, 1 de novembro de 2008

Sociedade Sustentável na Amazônia - Jean-Pierre Leroy

Uma ética renovada da democracia fundadora de uma sociedade sustentável. O exemplo amazônico brasileiro

O uso do conceito de “desenvolvimento sustentável” como perpetuação da ilusão do progresso não deve nos levar a concluir que está na hora de abandonar o conceito e o terreno aos abutres, embora prefiramos falar de “sociedade sustentável”. Propõe-se aqui, à luz de flashes amazônicos, mostrar como o que chamei precariamente de “ética renovada” é vivido de um certo modo na Amazônia e pode dar elementos para pensar uma sociedade sustentável na Amazônia.

Formada muito recentemente, à escala dos processos geológicos e naturais, a existência da floresta amazônica faz refletir sobre a fragilidade do nosso futuro. A floresta tem uma importância inegável como sorvedouro de CO2, umidificadora e amenizadora do clima, conservadora viva da variedade da vida. Mas demonstra agora uma fragilidade patente no balanço produção/consumo de CO2, ameaçado pela queima crescente da mata e dos campos; nos equilíbrios climáticos cujos periódicos desajustes vêm se multiplicando pela intervenção dos aprendizes de feiticeiro que somos; na biodiversidade aparentemente inesgotável mas cuja erosão pode chegar a um crescimento geométrico; nas suas águas, visível no volume e no regime dos afluentes da margem direita do Amazonas e na tendência a menor umidade de grandes áreas de florestas. Por isso, a população amazônica se vê investida de uma missão de conservação do que seria “patrimônio da humanidade”.

Os setores econômicos e políticos dominantes consideram a Amazônia como a última fronteira a abrir ao seu voraz apetite de lucro, e, por isso, não hesitam em instalar no congresso uma CPI das ONGs, sem nexo nem foco, e pressionar por todos os meios por mudanças catastróficas do Código Florestal. Por que então não escutar sua população? A conservação da Amazônia é ou, mais exatamente, era o projeto de futuro dos povos indígenas e dos caboclos ribeirinhos, freqüentemente obrigados hoje, por condições de sobrevivência, a liquidar com os seus recursos. Estas populações colocavam limites culturais e religiosos à exploração da floresta. Limites acionados unicamente em função das necessidades de reprodução individual e coletiva, não só das famílias e comunidades de hoje, mas das do futuro. A natureza, fonte de espiritualidade e de vida, não é algo que se quer dominar. Negocia-se com ela, que é temida, respeitada, manejada, assegurando que ela vai continuar a dar fartura e sustento.

Freqüentemente, certos grupos sociais amazônicos, semi-extrativistas semi-produtores, foram apressadamente apresentados como vivendo em regime de subsistência, distantes do mercado. Não é verdade, mas a inserção de muitos deles no mercado dava-se, e ainda se dá, nos marcos dessa reprodução familiar e não do lucro capitalista; portanto colocavam-se limites à exploração. Quanto à extração da borracha nativa, as condições mesmo da sua exploração, depois da primeira fase de dizimação total dos seringais do baixo Amazonas, exigiam que fosse preservado o ambiente natural.

Se essas estratégias de sobrevivência aparecem hoje mais merecedoras de registro etnográfico do que de incentivo econômico, as grandes questões ambientais nos fazem descobrir como esses povos e grupos sociais estão inseridos num projeto ético que liga a sua realidade à macro-esfera da ética. Sua existência de sacrifício e de teimosia lembra que não se pode construir desenvolvimento a custo da insustentabilidade e do desaparecimento de sociedades, pois, com eles, desaparece a possibilidade de um mundo humanizado, quer dizer um mundo onde o ser humano possa viver como gente. Lembra a continuidade e a coerência existentes entre a forma como se gera o quotidiano e a gestão do futuro da humanidade. Recorda, enfim, que existe a possibilidade de um outro mercado, a serviço da vida e não do lucro.

Não se trata de voltar ao passado e de isolar num ambiente anacrônico povos indígenas ou de restituir a extrativistas um mítico paraíso que nunca tiveram. A Amazônia quer hoje encontrar novos caminhos para um genuíno desenvolvimento sustentável. Duvido que estes caminhos possam ser encontrados pelos grupos econômicos e políticos que investem, depois do pasto, da mineração e da metalurgia bruta, na segunda onda, da madeira e do alumínio, ou já na terceira, dos grãos, em especial da soja. Pois continua a perspectiva de enclaves, da Zona Franca e Carajás até o Brasil em Ação, cujos projetos de infra-estrutura atravessam a Amazônia como um corredor obrigatório para exportação. Falta o debate com a sociedade amazônica no seu conjunto. Falta a percepção que a população da região deve ser a base e o motor do futuro da região. Falta cultura no sentido de uma visão do mundo fundada sobre os valores mencionados aqui. Falta ética.

O que falta às classes dominantes encontra-se nas classes trabalhadoras e “povos da floresta”. Organizações indígenas, movimento sindical no campo, movimento dos seringueiros, dos colonos da Transamazônica, dos pescadores artesanais, das cortadoras de babaçu, movimentos urbanos, fóruns de entidades, ONGs, setores políticos, pessoas de boa vontade... uma multiplicidade de pessoas e grupos colocam ou começam a colocar em prática a “responsabilidade-projeto” construtora do futuro. Em centenas de experiências, de projetos e de propostas, estão esboçando um outro tipo de desenvolvimento para a região.

Se o poder – qualquer poder não se auto reforma, a construção do futuro exige, portanto, mudanças no poder. Mas como um novo poder pode evitar reproduzir automaticamente os vícios do antigo poder? Como pode se levantar sem ser preso ao chão do imediato pelo peso do quotidiano e ao círculo estreito de uma moral da reciprocidade para com a sua clientela? A ética da responsabilidade-projeto para com o futuro pode ser o impulso que coloque em movimento a constituição de um novo poder e o ajude a levantar vôo.


Jean-Pierre Leroy é educador, assessor da Área de Meio Ambiente e Desenvolvimento da Fase e membro da Coordenação do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento.

www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=19&id=207

Foto: Dinho Reis (aldimarreis@yahoo.com.br)

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